sábado, 23 de abril de 2011

A Cidade dos Mortos

No fim-de-semana passado assisti ao filme "A Cidade dos Mortos", de Sérgio Tréfaut. Não sabia muito bem a que ia assistir, apenas sabia que se tratava de um documentário filmado num cemitério do Cairo. Mas que grande cemitério, condigno com a qualidade do documentário. O cemitério do Cairo é a maior necrópole do mundo. Um milhão de pessoas vivem dentro dele, seja em casas tumulares ou nos edifícios que cresceram em redor. Dentro deste cemitério há de tudo: padarias, cafés, escolas para as crianças, mercados, teatros de fantoches... estendendo-se por mais de dez quilómetros ao longo de uma auto-estrada. Contudo não deixa de nos fazer sentir como numa aldeia, com mães à caça de um bom partido para as filhas, rapazes a correr atrás das raparigas, disputas entre vizinhos, sonhos.
Decidi transcrever para aqui um pequeno texto do realizador acerca deste filme e das condicionantes que o rodeiam. Uma leitura interessante.

5 Obstáculos, 5 Estímulos
Notas sobre a rodagem – Sérgio Tréfaut

Fazer um filme é como travar uma guerra. «A cidade dos Mortos» foi o filme mais difícil que produzi e realizei até hoje. Os desafios e obstáculos diários foram tantos, sobre tantas frentes de batalha, que eu poderia passar dias a contar aventuras surreais… Mas, em jeito de introdução, de uma forma esquemática, aqui ficam as principais frentes de uma longa guerra…

1º OBSTÁCULO: A DISTÂNCIA
Depois de ter concluído alguns documentários sobre universos que me eram próximos (Outro País, Fleurette, Lisboetas), decidi que era o momento certo para tentar o que muitos outros tinham feito ao longo da vida: descobrir e filmar realidades distantes. Mas não parti procurando me enganar a mim próprio. Fui aos cemitérios do Cairo para falar daquilo que me interessa: da relação dos homens com a vida e com a morte, de pessoas de quem gosto e que admiro (e que podem viver em qualquer latitude), da alegria e do entusiasmo que podem ter pela vida, em condições adversas.

2º OBSTÁCULO: A LÍNGUA E OS REFERENTES
Em 2004, quando arranquei este projecto, não falava uma palavra de árabe e nunca tinha vivido em países de cultura muçulmana. Acredito que o modo de pensar de um grupo, seja ele qual for, é indissociável da gramática, da estrutura da língua, da musicalidade, do léxico e hábitos de comunicação. Fui oito vezes ao Cairo, vivi vários meses seguidos na cidade, tive aulas de árabe, dei aulas de documentário, transitei entre várias classes sociais, rodeei-me de egípcios. O lugar onde passei mais tempo foi, naturalmente, no cemitério. Hoje creio ter esquecido o pouco que tinha aprendido da língua, que à época me permitia seguir partes de uma conversa e dar indicações para a rodagem. Em contrapartida, ainda sinto orgulho por conhecer a vida quotidiana nos cemitérios melhor do que a maioria dos egípcios - que só vão lá para funerais e celebrações. Além da língua, o obstáculo cultural é enorme. Uma pessoa não tem como chegar a um sítio destes e «querer filmar». É todo um longuíssimo e complicado processo.

3º OBSTÁCULO: AUTORIZAÇÕES E CUMPLICIDADES
A primeira pergunta que nos fazem quando falamos em filmar no Cairo é «Do you have a permit?». No Egipto, o sistema burocrático e as autorizações para qualquer coisa são um inferno. Ingenuamente, pensei que as minhas «boas intenções», ou o meu respeito pelas pessoas, longe do sensacionalismo, poderiam facilitar. Afinal eu não trabalhava para uma televisão que vende miséria social. Puro engano. No início, passei semanas ridículas, arrastando-me de repartição em repartição para receber sempre informações contraditórias e inconclusivas. O Embaixador de Portugal, muito simpático e diligente, chegou a escrever cartas a pelo menos três ministros egípcios para apresentar o meu projecto e solicitar autorizações. O Embaixador nunca recebeu qualquer resposta. Esse silêncio, muito egípcio, foi bastante melhor do que uma recusa. Mais tarde, também tive aconselhamento diplomático francês e espanhol. Cheguei a fazer uma pré-selecção de potenciais coprodutores locais, todos eles entusiasmados com a hipótese de entrarem neste projecto e serem o parceiro que legalizaria tudo no Egipto. Nada deu certo. Finalmente abri os olhos e percebi que nunca poderia obter uma autorização para este filme. As autoridades queriam documentários sobre pirâmides e faraós, não sobre cemitérios habitados a respeito dos quais pesam os maiores preconceitos. Além disso, qualquer produtor local que se viesse a envolver corria o risco, durante o reino de Mubarack, de ver a sua produtora fechada. Após várias tentativas frustradas, voltei ao Cairo, pela quarta vez, acompanhado de um amigo câmara italiano, tão louco quanto eu, e decidi que tinha de conseguir filmar. Em poucos dias fomos adoptados por uma família de coveiros e penetrámos finalmente no universo do cemitério. Nessa viagem filmámos, por exemplo, a travessia da caravana de fantoches no Cemitério Sul. Eu já via aquela caravana de fantoches desde a minha primeira viagem e, pelo menos isso, eu não podia perder! Claro que na primeira noite em que filmávamos uma festa (um mulid), fomos interpelados e proibidos de filmar pela polícia. Mas no dia seguinte recomeçámos. Esse era o ritmo da nossa filmagem. Uma permanente guerra. E passo por cima de milhares de episódios para poder transmitir apenas a ideia de conjunto. Quando uma pessoa vai à guerra tem necessariamente de encontrar aliados. Nesse campo, o meu assistente de realização, Mohamed Siam, foi exemplar no incansável trabalho de estabelecer uma rede de contactos, visitando diariamente pessoas que viviam a 10 quilómetros umas das outras. Dentro desta rede, havia pessoas que, elas próprias, eram a porta para toda uma comunidade: coveiros, guardiões de cemitérios, sheiks, donos de cafés, guardas do mercado, etc. Mesmo assim, todos os dias sentíamos que a guerra recomeçava. A conquista das personagens era permanente. Às vezes, aqueles em casa de quem almoçávamos num dia, no dia seguinte já tinham receio de ser filmados. As reportagens feitas por televisões sensacionalistas criaram enormes dificuldades ao acesso a lugares como este.

4º OBSTÁCULO: CONCEITO E DRAMATURGIA
A realidade visual do lugar, aos olhos de um ocidental, não lembra em nada um cemitério. Ao chegar ao Cairo, a fotógrafa Inês Gonçalves disse-me imediatamente: ninguém vai perceber que isto é um cemitério! E não nos passava pela cabeça estar a filmar enterros às escondidas. Tinha demasiado respeito pelas famílias para ligar uma câmara no meio de um funeral. Todas aquelas casas tumulares e mausoléus em ruas de terra batida, pareciam de facto uma aldeia deserta de filme mexicano ou de far-west. Para não falar dos mercados apinhados de gente e zona de lojas…. Das ruas cheias de barbeiros… Assim, percebi que com um filme estritamente observacional sobre o lugar (essa era a minha primeira intenção) nunca chegaria a bom porto e também não conseguiria transmitir aquela diversidade. Passei à segunda hipótese: um filme que seguiria os preparativos de um casal de noivos para o casamento, que decorreria dentro do cemitério e alteraria a vida de dois jovens. Mas, após ano e meio de espera de uma boda interminavelmente adiada, os jovens não chegaram a casar em tempo. Pelo meio do caminho, fui filmando alguns casamentos, para tentar preparar-me e perceber como era… Passei à terceira hipótese: um filme em que alguns habitantes do cemitério, por quem eu tinha maior fascínio, falavam-me do lugar. Por último, hipótese final, percebi que a tudo isto faltava a voz mágica de um coveiro, que falasse com a propriedade de quem sempre viveu ali e que amava aquele lugar mais do que todos os outros.

5º OBSTÁCULO: AS QUESTÕES TÉCNICAS
As câmaras com que filmei estavam quase sempre estragadas, desfocavam a imagem, ou mais tarde eram usadas por uma directora de fotografia habituada a rodar em película, que considerava a câmara de vídeo quase como um brinquedo e, para meu desespero, não colocava o olho no visor… Assim, uma parte muito importante dos rushes deste filme têm problemas de definição. Esse problema veio ainda a agravar-se quando se perderam inesperadamente uma parte dos originais do filme, e apenas ficou o material digitalizado em final cut. Parecia um filme amaldiçoado. Por vezes pensei em desistir, como tantos realizadores que tentaram filmar esses cemitérios. Mas já tinha ido longe demais. E os contratos de produção, o tempo e a energia investidos, obrigavam-me a finalizar um trabalho. Se hoje levo o filme às salas de cinema é sobretudo pelo interesse antropológico, humano e filosófico. Foi esse mesmo interesse, acredito, que permitiu ao filme ser exibido em vários festivais internacionais e televisões.


O documentário é precedido da curta portuguesa “Waiting for Paradise” também no mesmo cenário e realizada por Tréfaut.